Nahima Maciel
postado em 16/10/2021 06:00 / atualizado em 16/10/2021 06:08
Ninguém quis concorrer a uma vaga com a atriz para a Academia - (crédito: Bob Wolfenson)
A presença de Fernanda Montenegro é tão monumental, que ninguém quis concorrer com ela a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). A atriz oficializou a candidatura em 6 de agosto. Aos 92 anos, completados neste sábado (16/10), ela concorre à cadeira 17, vazia desde a morte de Affonso Arinos de Mello Franco, em 2020.
No total, há mais três cadeiras vagas na instituição: a 12, de Alfredo Bosi; a 20, de Murilo Melo Filho; e a 39, de Marco Maciel. O resultado da eleição será divulgado apenas em 4 de novembro, mas Fernanda é praticamente uma unanimidade. No meio cultural, houve comemoração da notícia. Em tempos de cultura demonizada, a presença da dama do teatro brasileiro na ABL é vista como um sopro de esperança.
Quando Hélio Jaguaribe morreu, em 2018, Ignácio de Loyola Brandão, autor de Não verás país nenhum, se candidatou à vaga na cadeira 11. Ele não sabia que Fernanda Montenegro havia se candidato à mesma vaga. Ouviu dos amigos que seria uma disputa quase impossível e, em reverência, decidiu retirar a própria candidatura. “Quando estava para retirar a candidatura, me informaram que ela tinha retirado a dela”, conta o escritor, amigo da atriz há quase 60 anos.
Segundo ele, Fernanda alegou dois motivos: estava escrevendo o livro de memórias Prólogo, ato, epílogo, publicado em 2019, e iria completar 90 anos. “Fernanda me mandou um recado: ‘vá em frente, depois nos encontramos’. Era uma mensagem alegre, cordial, otimista. Ela seria eleita, sem dúvida, mas eu era incerteza. Deu no que deu, fui eleito por unanimidade. Agora, espero a chegada dela”, avisa Loyola.
Nesse meio tempo, Fernanda publicou não apenas um, mas dois livros. Além das memórias, preparou Fernanda Montenegro: Itinerário fotobiográfico, uma fotobiografia completa sobre uma trajetória que tem início como locutora de rádio, passa pela Companhia Maria Della Costa e pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e atravessa praticamente toda a dramaturgia brasileira, incluindo teatro, cinema e televisão.
Foram mais de 50 programas de televisão, entre novelas, peças e minisséries, 49 filmes, desde clássicos do cinema novo, como A falecida, de Leon Hirszman, até ícones do cinema contemporâneo, como Casa de areia (Andrucha Waddington) e Central do Brasil (Walter Salles), pelo qual concorreu ao Oscar.
Para o acadêmico Antônio Torres, é uma trajetória que merece uma homenagem. “Vejo a eleição dela como uma bela homenagem por toda uma carreira e uma vida dedicada às artes e às letras. Vai agregar o conhecimento dela, vai alargar a presença artística na casa”, diz o escritor. “Não é preciso nem dizer quem é, o Brasil inteiro sabe. E vai ser uma alegria poder conviver com ela na Academia. Tenho profunda admiração por ela, além do enorme talento de atriz, é uma pessoa maravilhosa, de uma visão humana das coisas, um trato tão delicado da vida, das pessoas.”
Notícia boa
A atriz Mariana Lima conta que comemorou durante uma semana quando soube da candidatura de Fernanda. “Fiquei muito emocionada de saber que estará na ABL, foi a melhor notícia da semana, fiquei comemorando a semana inteira, porque só tem notícia ruim”, conta Mariana. “Ela já é uma imortal. Tem que ser capa de todas as revistas. O fato de ser uma atriz, uma profissão que foi muito demonizada agora, é muito emblemático.”
Mariana lembrou do ensaio feito pela atriz para a revista Quatro cinco um em setembro de 2019. Vestida de bruxa, cercada de uma fogueira de livros, Fernanda critica a censura, celebra o lançamento de seus livros e lamenta o enveredamento do Brasil pelo caminho extremista conservador.
A atriz acabou agredida nas redes pelo então diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim, nomeado por Jair Bolsonaro. “Vê-la sendo queimada na fogueira de livros e vê-la de toga vai ser uma combinação muito forte de imagens. Essa gente horrorosa vai sair daí, e a gente vai lembrar da Fernanda, e não vai lembrar deles”, garante Mariana.
A atriz Vera Holtz tem o mesmo sentimento de Mariana. “A gente está numa fase muito demonizada, um período em que o nosso grupo chegou num lugar que não dá pra entender o que está acontecendo. Acho importante começar a ocupar outros espaços para mostrar a importância da trajetória do artista. A ABL é um lugar muito importante, porque tem muita gente especial. Achei ótimo, me surpreendeu”, diz Vera, que chama Fernanda carinhosamente de “ministério da cultura.”
O diretor Fernando Guimarães também vê a eleição da atriz para a ABL como uma luz no fim do túnel para a cultura de forma geral. “Acho que ela estar lá é uma vitória da cultura”, diz. “Ter uma representante dessas nesse momento em que a cultura no Brasil, com esse governo, está absolutamente desmoralizada vai ser uma vitória pra gente. Dá um alento nesse tempo em que estamos tão desacreditados.”
O diretor teve a oportunidade de conviver com a atriz no início dos anos 2000, durante a realização de uma oficina de teatro patrocinada pela então Brasil Telecom. “Ela ia dar uma oficina, e tínhamos que selecionar os alunos, então tivemos uma convivência com ela e fiquei impressionado, porque ela não só é uma grande atriz, como é uma grande pessoa inteligentíssima, muito simples e agradável”, conta.
Mil e um personagens
Para Ignácio de Loyola Brandão, é a ABL quem vai se engrandecer ao receber a atriz. Ele conta que nunca a viu em um papel ruim e gosta especialmente da cena clássica na qual cata feijão com Gianfrancesco Guarnieri em Eles não usam black tie, de Leon Hirszman.
Fernanda Montenegro nasceu Arlette Pinheiro Monteiro, neta de imigrantes italianos e portugueses, que estudou para ser secretária, mas “escorregou” para o teatro aos 15 anos, ao ganhar um concurso da rádio do Ministério da Educação. Começou nas radionovelas e passou rapidamente aos palcos, nos quais deu vida a praticamente todos os grandes clássicos da dramaturgia.
Viveu Fedra, Antígona, Medeia, interpretou dezenas de vezes os textos de Shakespeare, Beckett, Tchekov, Bernard Shaw e Luigi Pirandello, assim como dos brasileiros Augusto Boal, Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues. Para este último, aliás, foi inspiração e musa de duas peças. Com Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Fernando Torres, com quem viria a casar, integrou o Teatro dos Sete, companhia fundada por Gianni Ratto em 1959.
Fernanda é desse tempos das companhias de teatro criado por atores empreendedores. Ela também foi a primeira atriz contratada pela TV Tupi e vem de um tempo em que os clássicos eram encenados incessantemente, mas nunca congelou sua atuação no passado. Fernanda sempre acompanhou a dinâmica da passagem do tempo e das mudanças inevitáveis.
Viveu um amor homossexual na televisão em 2015, na novela Babilônia, com direito a um beijo gay em Nathália Timberg, filmou com o irascível Cláudio Assis, o enfant terrible do cinema contemporâneo, e sempre propagou uma mensagem humanista, de dedicação à arte, de reverência ao teatro e sua capacidade de enfatizar os dramas humanos.
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